Elogio de Helena (Górgias)

1 de novembro de 2009

    Tradução de Daniela Paulinelli
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(1) Ordem, para a cidade, virilidade; para o corpo, beleza; para a alma, sabedoria; para o ato, excelência; para o discurso, verdade. O contrário destes, desordem. Tanto homem, quanto mulher; tanto discurso, quanto obra; tanto cidade, quanto assunto privado, é preciso, por um lado, com louvor, honrar o digno de louvor; por outro lado, repreender ao indigno. Pois igual erro e ignorância é repreender coisas louváveis e louvar coisas repreensíveis.
(2) Cabe ao mesmo homem dizer corretamente o devido e refutar os que repreendem Helena, mulher acerca da qual veio a ser uníssono e  unânime tanto a crença dos que deram ouvidos aos poetas, quanto a fama do nome que, de desgraças, tornou-se memória. Eu, porém, pretendo -dando ao discurso alguma lógica- por um lado, fazer cessar a acusação sobre a que foi mal falada; por outro lado, demonstrar que os que a repreendem estão mentindo e expor a verdade [ou] fazer cessar a ignorância.
(3) Que é, então, por natureza e por raça, primeira dos primeiros homens e mulheres, a mulher acerca da qual é este discurso, não é inevidente, nem a poucos. Pois evidente que como mãe teve Leda, mas, como pai, por um lado, é nascida de deus, por outro lado, do que é dito mortal -Tíndaro e Zeus- dos quais, um pelo ser foi reconhecido, outro, pelo dizer, foi refutado. E um era o mais forte dos homens; outro, o soberano de tudo.
(4) Nascida destes, tinha beleza semelhante ao divino, a que recebendo e não ocultando manteve. Muito desejo de amor produziu em muitos e com um só corpo reunía muitos corpos de homens que pensavam grande sobre grandes coisas. Dos quais tinham uns, grande riqueza; outros, boa reputação da antiga linhagem; outros, boa constituição do próprio vigor; outros, o poder da sabedoria adquirida. E vinham todos tanto pelo amor ávido de vitória, quanto pela invencível avidez de honra.
(5) Aquele que, então, e por quê e como saciou o amor tomando Helena, não direi; pois o dizer aos que sabem coisas que sabem tem credibilidade, mas não traz deleite. O tempo de antes, por meio do discurso, agora transponho, avançarei para o início do discurso por vir e exporei as causas pelas quais era natural que acontecesse a viagem de Helena a Tróia.
(6) Pois, ou por determinação da Sorte e por deliberação dos deuses e por decreto da Necessidade fez o que fez, ou foi raptada à força, ou persuadida pelos discursos, ou surpreendida pelo amor. Se foi, então, por causa do primeiro, o causador merece ser acusado, pois o ímpeto de um deus, por precaução humana, é impossível impedir. Pois não é natural o mais forte ser impedido pelo mais fraco, mas o mais fraco pelo mais forte ser governado e conduzido, e o mais forte conduzir, mas o mais fraco seguir. Um deus é mais forte do que o homem em força e em sabedoria e nas outras coisas. Se, então, deve-se atribuir a causa à Sorte e ao deus, deve-se absolver Helena da infâmia.
(7) Se, porém, à força foi raptada e ilegalmente foi forçada e injustamente foi ultrajada, evidente que, por um lado, o que raptou, como ultrajou, cometeu injustiça; por outro lado, a que foi raptada, como foi ultrajada, foi desafortunada. Merecedor, então, o bárbaro que empreendeu um empreendimento bárbaro -tanto pelo discurso, quanto pela lei e ainda pelo ato- de alcançar pelo discurso, acusação; pela lei, privação de direitos; pelo ato, penalidade. Mas a que foi forçada e privada da pátria e orfanada dos queridos, como poderia não ser, naturalmente, mais digna de comiseração do que de maledicência? Pois ele cometeu atos terríveis, ao passo que ela  sofreu; justo, então, lamentá-la, mas odiá-lo.
(8) Se, porém, foi o discurso o que persuadiu e enganou a alma, não é difícil defender-se disto e absolver-se da acusação, como se segue. Um discurso é um grande senhor que, por meio do menor e mais inaparente corpo, leva à cabo as obras mais divinas. Pois é capaz de fazer cessar o medo, retirar a dor, produzir alegria e fazer crescer a compaixão. Que estas coisas são assim, mostrarei.
(9) É preciso, porém, também por meio da opinião, expor aos que estão ouvindo: toda poesia, tanto julgo, quanto nomeio, um discurso que tem metro, pela qual vem aos ouvintes um tremor que rodeia o medo, uma compaixão que abunda em lágrimas e uma saudade que se compraz no lamento. Diante de coisas alheias -dos feitos e dos corpos com boas sortes e reveses- uma certa afecção particular, por meio dos discursos, a alma experimenta. Pois bem, que eu mude de um para outro argumento.
(10) Com efeito, os encantamentos inspirados pelos deuses por meio dos discursos tornam-se introdutores de prazer, desvios de dor. Pois, encontrando com a opinião da alma, o poder do encantamento enfeitiça, persuade e altera a alma por sortilégio. Descobriram-se duas artes, do sortilégio e da magia, as que são erros da alma e enganos da opinião.
(11) Quantos a tantos acerca de tantas coisas tanto persuadiram, quanto persuadem plasmando um discurso mentiroso. Se, com efeito, todos acerca de todas as coisas tivessem tanto memória do passado, quanto noção do presente e ainda presciência do futuro, não seria semelhantemente semelhante o discurso, aos que, agora, não é acessível nem lembrar o passado, nem examinar o presente, nem pressagiar o futuro. De modo que acerca de muitas coisas a maioria apresenta à alma a opinião como conselheira. A opinião, porém, sendo escorregadia e instável, em sortes escorregadias e instáveis envolve os que com ela tratam.
(12) Que motivo, então, impede de julgar que também Helena, semelhantemente, foi subjugada pelos discursos, não voluntariamente, mas como se tivesse sido arrebatada por força das mais fortes? Pois a disposição da persuasão, por um lado, de maneira nenhuma parece com a necessidade; por outro lado, tem o mesmo poder. Com efeito, o discurso que persuadiu a alma constrangeu a que persuadiu tanto a acreditar nas coisas ditas, quanto a concordar com as coisas feitas. Então, o que persuadiu, como constrangeu, comete injustiça; mas a que foi persuadida, como foi constrangida pelo discurso, em vão é mal falada.
(13) Que, porém, a persuasão, aproximando-se pelo discurso, também marca a alma do modo que pretende, é preciso compreender primeiro pelos discursos dos metereólogos, os quais, opinião contra opinião -uma, suprimindo; outra, produzindo- fazem aparecer coisas inacreditáveis e inevidentes aos olhos da opinião. Segundo, pelos necessários combates por meio dos discursos, nos quais um só discurso, escrito com arte, não proferido com verdade, deleita e persuade uma grande multidão. Terceiro, pelos conflitos dos discursos dos filósofos, nos quais se mostra também a rapidez do juízo que faz cambiável a credibilidade da opinião.
(14) Têm a mesma relação tanto o poder do discurso para o ordenamento da alma, quanto o ordenamento dos fármacos para a natureza dos corpos. Pois assim como alguns dos fármacos expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns, a doença, outros, a vida, assim também dentre os discursos uns afligem, outros deleitam, outros atemorizam, outros conferem ousadia aos ouvintes, outros, por alguma má persuasão, drogam e enfeitiçam completamente a alma.
(15) E que, se foi persuadida pelo discurso, não cometeu injustiça, mas foi desafortunada, está dito. Passarei, então, à quarta causa com um quarto argumento. Pois, se foi o amor que fez todas estas coisas, não dificilmente ela escaparia da acusação do erro que se diz ter ocorrido. Pois as coisas que vemos têm uma natureza, não a que nós queremos, mas a que calhou a cada uma; por meio da visão a alma é marcada também em seus modos.
(16) Imediatamente, pois, quando quer que corpos inimigos e formação bélica sobre inimigos, com equipamento de bronze e de ferro - tanto de proteção, quanto de ataque- a vista os contemplar, é perturbada e perturba a alma, de modo que, frequentemente, do perigo do porvir, como se fosse presente, fogem sobressaltados. Pois o forte costume da lei é banido pelo medo proveniente da visão, a que vindo faz descuidar tanto do belo, julgado segundo a lei, quanto do bom, advindo da vitória.
(17) Alguns, logo após terem visto coisas temíveis, perdem também o senso do presente na presente ocasião, de tal modo o medo extingue e exclui a percepção. Muitos caem em sofrimentos vãos e em doenças terríveis e em loucuras incuráveis, de tal modo a visão inscreveu no pensamento imagens dos acontecimentos vistos. E muitas coisas apavorantes são omitidas, mas as coisas omitidas são semelhantes, precisamente, às coisas ditas.
(18) De fato, os pintores, quando de muitas cores e corpos um só corpo e figura realizam perfeitamente, deleitam a vista, pois a criação de estátuas de homens e a fabricação de imagens de deuses oferecem aos olhos uma contemplação agradável. Assim, naturalmente, umas coisas afligem, outras provocam desejo à vista. Muitas coisas, em muitos, produzem amor e desejo de muitos feitos e corpos.
(19) Se, então, pelo corpo de Alexandre, o olho de Helena sentiu um ímpeto e transmitiu à alma o conflito do amor, que há nisso de espantoso? Se o que é deus tem o divino poder dos deuses, como o mais fraco seria capaz de o pôr para correr e se defender? Se, porém, é uma doença humana e um desconhecimento por parte da alma, não se deve imputar como erro, mas se deve julgar como infortúnio. Pois veio, como veio, pela armadilha da sorte, não pela deliberação do juízo; pelas necessidades do amor, não pelos preparativos da arte.
(20) Como, então, considerar justa a reprimenda à Helena? Esta que, ou enamorada, ou persuadida pelo discurso, ou raptada à força, ou constrangida pela necessidade divina, fez o que fez? De todo modo escapa à acusação.
(21) Afastei com este discurso a infâmia de uma mulher, permaneci na regra que estabeleci no início do discurso; tentei dissipar a injustiça da reprimenda e a ignorância da opinião; quis escrever o discurso, por um lado, como um elogio de Helena, por outro lado, como um brinquedo.


Fonte do texto grego:
Fragmenta, ed. H. Diels and W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, vol. 2, 6th edn. Berlin: Weidmann, 1952 (repr. Dublin/Zurich: 1966): 279-306.


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Como citar este trabalho:
GÓRGIAS. Elogio de Helena. Tradução de Daniela Paulinelli. Belo Horizonte: Anágnosis, 2009. [Apresenta as traduções de textos gregos realizadas pelo grupo Anágnosis, da UFMG.] Disponível em: <http://anagnosisufmg.blogspot.com/2009/11/elogio-de-helena-gorgias.html>. Acesso em: ... (dia mês ano).


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